Péssimas condições de vida e trabalho são a fonte da violência no Equador, afirma historiador

A deterioração drástica e rápida das condições de vida da população, resultado das políticas neoliberais de Estado mínimo dos últimos seis anos no Equador, produziram o cenário propício ao crescimento descontrolado do crime organizado e da consequente violência generalizada no país.

As eleições do próximo domingo (20) oferecem uma oportunidade de mudança de rumo com a retomada das políticas de “Buen Vivir” implantadas nos governos de Rafael Correa (2007-2017) e representadas hoje pela candidatura de Luisa González, do movimento Revolução Cidadã. Para entender o processo de deterioração social e econômica do país andino, conversamos em Quito com o historiador, escritor e pesquisador Juan Paz y Miño Cepeda, doutor em História pela Universidade de Santiago de Compostela, na Espanha, e pela PUC do Equador, onde também se graduou em Ciências Políticas e Sociais.

CAIO TEIXEIRA/COMUNICASUL – Direto de Quito

Escreveste recentemente que “tal como aconteceu no passado, um novo governo dos ricos e poderosos empresários, representado por Guillermo Lasso, resultou num fracasso”. No entanto, a maioria dos candidatos à presidência pertencem e defendem esta mesma classe. Existe alguma diferença entre as propostas destes candidatos de direita?

Em primeiro lugar, vale a pena considerar que existe um fenômeno de duas vias na América Latina, que o Equador reproduz: por um lado, empresários ricos que querem ser presidentes porque desconfiam dos intermediários políticos e assim asseguram os seus interesses no Estado, bem como os do seu círculo de classe; por outro lado, uma população que vota neles por múltiplas razões, como o desprezo pelos políticos tradicionais, o encantamento com ofertas supostamente redentoras, ou as décadas de bombardeamento pela ideologia neoliberal que leva a acreditar nas soluções dos mercados livres e da iniciativa privada. Examinando a história do Equador desde 1979, quando se iniciou a era da democracia após uma década de ditaduras militares, os governantes que assumiram os slogans do empreendedorismo neoliberal durante as últimas décadas do século XX e o início do século XXI, embora possam demonstrar a prosperidade dos negócios, são também aqueles que causaram a maior concentração de riqueza, juntamente com o enfraquecimento das capacidades do Estado e das suas instituições, bem como a persistente deterioração das condições de vida e de trabalho da maioria da população. Esse processo foi restaurado e aprofundado desde 2017, primeiro com Lenín Moreno e em seguida com o banqueiro Guillermo Lasso. Para as próximas eleições, em agosto de 2023, há quatro (entre oito) candidatos empresários e milionários.

Empresários ricos querem ser presidentes para manter seus privilégios porque desconfiam dos intermediários políticos

Todos estes candidatos da “direita econômica”, independentemente das diferenças pessoais ou partidárias, concordam com os mesmos slogans neoliberais básicos: reduzir o Estado, abolir ou baixar os impostos, privatizar os bens e serviços públicos, abrir os mercados internacionais, facilitar o investimento estrangeiro e, sobretudo, flexibilizar e precarizar as relações laborais. Por vezes, estas palavras de ordem são qualificadas ou suavizadas na linguagem. Mas a visão da economia e da sociedade mantém-se inalterada.

Dias antes das eleições, o prefeito de uma grande cidade, um candidato presidencial de direita, um líder histórico do partido de esquerda que lidera as pesquisas foram assassinados a tiros e uma candidata à deputada do mesmo partido sobreviveu a um ataque armado. Que forças econômicas e políticas da sociedade estão interessadas neste tipo de crime?

Estamos também perante um novo fenômeno, com raízes nacionais e internacionais: a presença do crime organizado e das máfias criminosas. O seu crescimento não parou desde 2017 e a partir de 2021 explodiu. Existem estudos suficientes que nos permitem compreender os diferentes fatores que explicam esta evolução. Mas em plena era do neoliberalismo equatoriano revivido, o slogan de “downsizing” [encolhimento] do Estado conduziu, sem dúvida, não só ao desmantelamento das capacidades de segurança do Estado, mas também ao enfraquecimento dos investimentos que teriam permitido o reforço das forças policiais e, sobretudo, das políticas sociais.

O encolhimento do Estado foi responsável pelo crescimento do crime organizado

Hoje em dia, é impossível ignorar o fato de a corrupção e a infiltração do crime organizado no Estado terem se unido. Existe uma força de poder “informal” ou “ilegal” que está se sobrepondo ao poder formal. A população equatoriana vive hoje no medo e na impotência, porque não existe um Estado que a proteja com a eficácia, a força e o imediatismo que qualquer cidadão espera. E só podemos falar de uma forma genérica, porque partimos do princípio de que as informações de inteligência para determinar os responsáveis pelos atentados devem estar sob o controle das forças da ordem.

O presidente Lasso com seu cunhado Danilo Carrera, empresário envolvido em corrupção (Pichincha Comunicaciones)

Parece que nos últimos seis anos os governos do Equador exageraram na política do Estado mínimo e implementaram o Estado zero, o que conduziu à realidade atual de violência generalizada e de total liberdade para o crime organizado. Se poderia dizer que a única saída é a retomada urgente de um Estado forte?

Comecemos por distinguir duas correntes ideológicas: a neoliberal e a que hoje se define como libertária. Para os neoliberais, o Estado deve ser reduzido a favor das empresas privadas, da sua rentabilidade e dos mercados livres. Para os libertários ou “anarco-capitalistas”, como também gostam de se definir, o Estado deve desaparecer e só deve existir o domínio da iniciativa privada absoluta. Os neoliberais equatorianos têm também uma visão oligárquica da sociedade, pelo que preveem um Estado despótico que imponha os interesses das classes proprietárias capitalistas. Os libertários não ganharam força no país. Mas é possível que sejam encorajados e cresçam com o fenômeno “Milei” na Argentina. Mas eu já disse antes: o slogan do encolhimento do Estado equatoriano reduziu a sua capacidade de lidar com a questão da segurança do cidadão. E, com base na experiência histórica não só do Equador, mas também de países como a Colômbia e o México, não é apenas necessário reforçar as capacidades do Estado, mas também levar a cabo políticas sociais e, atualmente, estabelecer acordos com outros países para abordar a questão da segurança com uma ligação internacional suficiente entre governos da mesma região.

Redistribuição da riqueza pode cortar as raízes fundamentais da violência

Qual será a principal dificuldade para o futuro governo começar a enfrentar este nível de violência política que, no fundo, está sempre a serviço de interesses económicos legais ou ilegais? Que mecanismos, políticos ou repressivos, podem e devem ser utilizados nesta cruzada?

É uma questão muito complexa. Aqueles que a estudaram também formulam abordagens e observações que podem orientar as políticas públicas. Há experiências latino-americanas que devem ser analisadas para ver se são viáveis em contextos tão variados como os de cada país da região. Mas não há dúvida de que as soluções não estão exclusivamente na militarização ou na simples repressão armada. Não há dúvida de que as más condições de vida e de trabalho são a fonte última da violência. Por isso, é necessário superar o desemprego e o subemprego, promover o trabalho digno, a educação de qualidade, uma forte e radical redistribuição da riqueza e a universalização da segurança social, das pensões, dos cuidados de saúde preventivos e da medicina socializada, para conseguir novas sociedades em que as raízes fundamentais que dão origem à violência sejam inevitavelmente cortadas.

Do ponto de vista histórico, pode o cidadão comum comparar o período dos governos de Correa com o descalabro que o seguiu e aprender sobre a verdadeira política e a luta de classes? A preferência pela candidata identificada com Correa seria um indício disso?

Falar do governo de Rafael Correa e do “correísmo” suscita todo o tipo de paixões. Exigir objetividade, racionalidade e fundamentação de opiniões ou argumentos é inútil para aqueles que foram alimentados pelo anti-correísmo. Mas Correa representou um ciclo histórico do progressismo equatoriano, ligado a um processo semelhante em muitos países da América Latina no início do século XXI. Quem se lembrar com sinceridade dessa década, e ainda mais se for especialista na matéria e conhecer os relatórios internacionais existentes, compreenderá que o Equador viveu um período de progresso na construção de uma economia social orientada para o “Bem Viver”. Esse “modelo” de economia foi abandonado desde 2017 com o governo de L. Moreno, que restaurou o modelo econômico neoliberal, que também adquiriu um caráter oligárquico desde 2021, com o governo de G. Lasso. Esta mudança histórica de ciclos explica o que tem acontecido no país. Não é fácil de avaliar. As novas gerações não viveram a era do “correísmo”. Por isso, nas próximas eleições presidenciais, a polarização política é, em última análise, entre as forças que apoiam o caminho de uma economia social e as elites que querem garantir a economia empresarial-neoliberal e oligárquica. É difícil supor que os cidadãos estejam plenamente conscientes deste processo. E a história, como o passado, tende a ser esquecida. Esperemos que a maioria dos equatorianos consiga finalmente entender o que o país está enfrentando e que possamos ultrapassar os desastres acumulados em seis anos.

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A Agência ComunicaSul está cobrindo as eleições presidenciais e à Assembleia Nacional do Equador graças ao apoio das seguintes entidades: jornal Hora do Povo, Diálogos do Sul, Barão de Itararé, Portal Vermelho, Correio da Cidadania, Agência Saiba Mais, Intersindical, Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB), Central Única dos Trabalhadores do Paraná (CUT-PR); Associação das/os Assistentes Sociais e Psicólogas/os do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (AASPTJ-SP), Federação dos/as Trabalhadores/as em Empresas de Crédito do Paraná (FETEC-PR), Sindicatos dos Trabalhadores em Água, Resíduos e Meio Ambiente do Estado de São Paulo (Sintaema-SP) e de Santa Catarina  (Sintaema-SC), Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias da Construção Pesada no Estado do Paraná (Sintrapav-PR), Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo (Apeoesp Sudeste-Centro), Sindicato dos Escritores no Estado de São Paulo, Sindicato dos Trabalhadores no Poder Judiciário Federal de Santa Catarina (Sintrajusc-SC); Sindicato dos Trabalhadores no Poder Judiciário do Estado de Santa Catarina (Sinjusc-SC), mandato popular do vereador Werner Rempel (Santa Maria-RS) e dezenas de contribuições individuais.

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